Prazer

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São Paulo, SP, Brazil
Vinte anos, estudante de ciências sociais, atriz do grupo "Pequeno Teatro de Torneado", filha de uma carioca com um pernambucano.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Carta de despedida ao Tio Armando



- na foto, minha mãe e o tio Armando.



Oi tio,
Não sei por onde começar.
Muito menos terminar.
Na verdade, não gostaria de terminar nada.
Em nenhum momento, pensei em terminar algum assunto ou mesmo alguma história com o senhor.
Sinceramente, preferia dar continuidade a tudo. Principalmente ao que vivi contigo durante a minha infância, pois a minha adolescência tem sido conturbada por uma extrema quantidade de hormônios e de falta de tempo.
Sinto que tudo tem passado extremamente rápido. É a falta de espaço que nos dá essa impressão talvez. Cada dia que passa tudo está mais próximo de tudo. As igrejas estão mais próximas das casas. A Europa mais próxima da África. As pessoas mais próximas das pessoas. E ao contrário disso tudo, não temos espaço nem de rezar, nem de viajar, muito menos de encontrar alguém.
Devo admitir que muitas vezes, me sinto sufocada por esse caminho caótico que me cruza.
Sinto uma saudade da calmaria, do cheiro do mar. Sinto falta do vento de Pernambuco. Do céu azul sem nuvens que minha mãe gosta, e principalmente, das árvores.
Vou te contar um segredo tio: o que eu mais sinto falta de Pernambuco são as árvores. Agora, no carnaval, quando estive por lá, todo dia acordava e olhava para a janela. Eu estava em um prédio que ficava na frente da Jaqueira, o parque que eu brincava quando criança. Era reconfortante ver aquelas árvores de folhas largas refletindo os raios do sol amarelo-alaranjado que pairavam sobre suas superfícies, bem no momento do amanhecer.
Aprendi a chamar isso de sagrado: as árvores, Pernambuco e o Rio de Janeiro.
São meus sagrados porque lá, permanecem pessoas que me fazem acreditar que existe algo sagrado. Acredito que os lugares são as pessoas. Acredito que a minha família é sagrada, e que quando eu preciso relembrar quem eu sou, eu retomo aquele caminho. Retomo aquela estrada e chego á Tijuca e vejo todos. Escuto as histórias dos Martins de Barros, e vejo que grande parte de mim é feita de um passado que eu não vivi.
Sabe tio, ao longo dessas idas e vindas e relembranças de quem eu sou e quem eu fui, é perceptível a tua presença na minha vida. De maneira que não consigo hoje em dia, ignorar a tua importância ao longo desses meus dezoito (quase dezenove anos).
Lembro-me como se fosse ontem de nós, andando por Botafogo, e você me mostrando onde morava com o restante dos meus tios e com a minha mãe. Recordo-me dos passeios, dos inúmeros lugares que fomos juntos. Das aulas de fotografia. Daquela aula de história sobre os índios. Das esculturas de argila que fizemos aqui em casa. Das visitas ao centro do Rio de Janeiro. Dos desenhos que você fazia nos meus cadernos de escola. Dos sorvetes na Confeitaria Colombo. Das caminhadas na trilha da Praia Vermelha. Das trilhas para darmos comida aos macacos. Do cachorro de três patas. De tudo.
Você me ensinou a me interessar por história e geografia. Ensinou-me a olhar para a educação com outros olhos. Ensinou-me a perceber as pessoas, a notar as diferenças entre as pessoas. Ensinou-me sobre teatro. Sobre natureza. Sobre o ser humano.
E principalmente, você me ensinou a fotografar. Só quem convive comigo sabe o quanto eu amo fotografar, o quanto isso tem uma importância em particular na minha vida. Uma vez você me disse que eu não precisaria de uma máquina fotográfica para registrar o que eu via. Eu precisava gravar aquilo na minha cabeça. Aquele momento ficaria ali, guardado.
Desde então cultivo uma memória fotográfica cada dia mais lotada, cada dia com um álbum maior e muito mais abarrotado de imagens, colocado sobre as minhas estantes internas.
Aprendi também a registrar sons. Nunca me esquecerei da sua voz de papai Noel, daquela sua risada. Nem de você, todo dia ao me encontrar, falando "Meu Deus, cada dia que passa você está mais parecida com a sua mãe querida!".
Hoje eu cresci. Estou bem mais parecida com mainha. Tenho dezoito anos agora. Estou quase entrando em uma faculdade. Daqui a alguns anos irei morar fora, assim como o Pedro foi. Depois casarei, terei filhos, e contarei todas as histórias que você me contou, e contarei todas as histórias que eu vivi com o senhor.
E ensinarei tudo também. Tudo o que eu aprendi. Mostrarei todas as fotografias para eles. E imitarei o senhor, para eles também darem risada daquela voz que eu ria, quando pequena, quando grande, quando sempre.
O fluxo da vida vai levando a gente. Uma vez perguntei a minha mãe se a vida dela passou rápido, ela disse que sim. Acho que é normal. Acho que tudo se ajeita, tudo fica sempre bem. É o fluxo que nos leva, ele que ajeita tudo. Por isso, talvez não precisamos nos preocupar. Por isso talvez, as pessoas mais velhas ficam bem calmas, quando o fim está próximo. Acho que elas já devem ter aprendido que tudo ficará bem.
“Desejo muita calma para mim e para você. Esse é o momento em que precisamos nos poupar. Evitar transtornos. Evitar pronunciar a palavra não, porque não é tão somente uma palavra.”
Calma tio. Calma Beatriz. Tudo passa. Que a dor não possa te afligir mais. Que tudo o que permaneça sejam as fotografias, e o nosso Rio de Janeiro. O nosso sagrado, o nosso mar, a nossa praia de Botafogo. Que a morte venha carregada de fotografias, e nada mais que fotografias. Nada mais que imagens para colocarmos no nosso altar particular. Para permanecermos orando pelo tempo.
Obrigada por me permitir a tua parte mais bela. Juro-te de pé junto que tu estás dentro de mim naquele lado da tua querida Iemanjá, em todas as oferendas que dei e darei ao mar. Esteja ao lado de tuas mães, ao lado do mar e das árvores, de Pernambuco. Eu estarei para sempre com o senhor. E o senhor, estará para sempre comigo.
Prometo não soltar da tua mão quando pegar no sono. Prometo me recordar de você sempre, principalmente quando voltar aos lugares que são nossos. E prometo tornar esses lugares cada vez mais nossos. Espero que agora, tudo seja sempre doce.

Estarei sempre aqui, e aí.
Um beijo, da sua sobrinha Beatriz.

Um comentário:

  1. Quando a gente lembra de algo maior... Tocante, muito tocante.

    Obrigado Tio Armando, pelo lindo presente de Natal, a Beatriz Martins de Barros aprendeu a presentear as pessoas com grande dedicação ao ser humano.

    Biazinha, desculpe por vezes a força de minhas palavras, tem gente que nos alucina e você é uma delas.

    Um mar de boas energias para sua família.

    William

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