Prazer

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São Paulo, SP, Brazil
Vinte anos, estudante de ciências sociais, atriz do grupo "Pequeno Teatro de Torneado", filha de uma carioca com um pernambucano.

sábado, 21 de novembro de 2009

"Pinta os lábios para escrever a tua boca na minha"

No início, não existia nada.

Apenas as paredes brancas (que eram banhadas pelos raios de sol que vazavam das janelas espalhadas pela casa) e a minha sombra, conseqüência dos tais raios.

Nisso, eu continuava me movimentando na minha solidão contínua. Um corredor, vazio e branco.

Apenas com a minha sombra e com os raios que permitiam a existência da minha companheira que, no final, não deixava de ser eu mesma.

Ás vezes, chovia. E a janela permitia a entrada de novos movimentos. Os pingos de chuva, o som dos trovões e as luzes dos raios. Nesses dias, eu parava e olhava para fora da janela, e não pensava em nada.

Deixava minha sombra na parede, já que os raios de sol estavam cobertos pelas nuvens, e me deliciava com a minha verdadeira individualidade. Com o nada, puro, leve e simples.

Foi então que um dia, depois de uma chuva forte e demorada, escutei um barulho vindo do fundo do meu corredor. Assustei-me, meu coração disparou, cai para dentro da casa e percebi que acabara de ouvir algo que nunca havia escutado anteriormente. Assim como uma criança, quando sai do útero de sua mãe, e escuta aqueles sons que posteriormente, vai descobrir o significado de cada um.

Abri a porta do quarto, o corredor estava vazio e escuro. Fui andando lentamente procurando algo ou alguém como responsável do ato de quebrar o meu silêncio. E a cada passo, maior o meu nervosismo se tornava de não reconhecer nenhuma resposta para aquele acontecimento. Tudo igual, nada de diferente. Um alívio, ou uma nova preocupação. Ainda não sabia ao certo o que era, mas sabia que era algo de novo, isso sim.

Olhei para o lado, e aí, encontrei a tal resposta que procurava: a parede do corredor, que antes, era coberta pelo branco contínuo e opaco, agora estava tomada por uma mancha azul. E por um cheiro, de tinta nova, que acabou de ser pintada.

Tinta fresca, que escorria e molhava os meus pés, com aquela textura concentrada que lembra mel, que gruda nos nossos lábios e só depois de algum tempo, conseguimos retirar.

Porem, aquele gosto de mel sempre continua nos lábios de quem usufrui de sua doçura. Assim como continuou a tinta azul nos meus pés e na parede branca. Aquela mancha foi uma porta aberta para milhões de perguntas que eu queria fazer. Não para mim, mas para o ser que fez aquilo.

Desde então, todos os dias e noites em que chovia. Eu deixei de olhar para a janela, e ficava no corredor, esperando alguém voltar para pintar novamente a parede branca. Porém, nunca aparecia.

E sempre quando eu caia no sono, ou ia na janela e voltava a me deliciar com a movimentação da chuva, escutava o barulho no corredor. Saia correndo e encontrava uma mancha nova.

Primeiro foi o azul, depois o verde, o amarela, o vermelha. Depois, as cores começaram a se misturar e formar novas cores. Novos tons foram criados, novas formas, e o cheiro de tinta fresca era o que imperava. Eu diante daquele movimento comecei a me sustentar pelo novo, e ficava cada dia mais intrigada e mais interessada, mais apaixonada. Sem saber o que pensar, o que fazer e como agir.

Agora, não apenas os meus pés mas minhas mãos estavam coloridas, diante do toque que eu encontrava toda vez que uma mancha nova aparecia. Minhas roupas, meu cabelo, minha janela. Eu me permiti ao toque, ao contato estabelecido com as texturas, cores e aromas que entraram dentro de mim. E quando os raios de sol batiam na nova janela, invadindo a nova casa, eu me sustentava na beleza criada e sorria de alegria, com aqueles novos raios que eram estabelecidos diante da parede.

Foi assim durante muitos anos. Muitos anos eu digo, considerando o meu tempo determinado como ano. Muitos anos se passaram, e foi assim durante muito tempo entre eu e o meu pintor. Foi assim que eu me referia ao ser que pintava minha casa. Nunca vi nem encontrei com este. Não sabia nem mesmo se era ele ou ela. Apenas aceitei a condição de que alguém, de fora ou de dentro tanto faz de onde, invadia o meu corredor e se divertia com a minha parede branca.

E quando a parede deixava de ser totalmente branca, eu pintava ela novamente de branco. Para que ele, o meu magnífico pintor,delicia-se e aproveita-se todo aquele nada para me fazer de tudo, para me mostrar o seu tudo, para me desenhar como seu tudo.

E eu, do nada, me tornei tudo. Esta foi a relação estabelecida. E mesmo se um dia, eu quisesse vê-lo, não veria. Pois a idéia não era vê-lo, consumi-lo, sentar-me ao lado dele na frente da minha janela e ver a chuva caindo. Nem conversar, nem tocar, nem sentir. Apenas fazer tudo isso através de suas cores, esta era a troca que ele estabeleceu, e eu, como ser apaixonado, me permiti a esta troca.

Do tudo, eu fui pro mundo.

Pulei a janela deixando-a aberta, para que no tempo de chuva, o pintor entre por ela. Antes, pintei minha parede de branco, e escrevi com um lápis preto: “Pinte minha parede branca, sinta-se a vontade em minha casa. E quando eu voltar, vou trazer comigo todas as cores que eu encontrar pelo mundo”.

De agora, em diante, o tudo complementou o nada. E do branco, veio ele, que trouxe a minha cor, a sua cor..

A nossa cor.

Um comentário:

  1. os pintores que moram dentro da nossa alma são tão essenciais a nossa vida quanto o ar de tdos os dias. que bom que vc deixou portas e janelas abertas e foi capaz de entrar em contato.=)

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